Cuidar e ser cuidado: ad libitum

No decurso do tratamento médico para uma qualquer doença de longa duração, todos tememos ouvir expressões como “Não há mais nenhum tratamento que possamos fazer.”. E, muitas vezes, a sugestão de transição para acompanhamento em Cuidados Paliativos, chega-nos como um insulto que parece impor uma qualquer sentença de morte declarada. No entanto, o foco desta área especializada não se limita aos cuidados de fim-de-vida. E, quanto mais cedo tivermos noção da sua verdadeira dimensão e potencial, melhor cuidaremos e seremos cuidados.


Importa-nos, portanto, relembrar que, etimologicamente, palliāre (cobrir com capa) apela ao alívio e à atenuação. Daqui, surge a concepção socialmente disseminada de que um dos grandes objetivos deste seguimento é fornecer alívio da dor e outros sintomas de desconforto. E, de facto, no início dos anos 80, a Unidade de Cancro da OMS começou por defender o alívio da dor e disponibilização de opióides, a nível global, lançando, assim, a semente dos objetivos para os cuidados paliativos.

Tal como na doença oncológica, a noção de que as questões fatais se começam a desenvolver num determinado tempo antes de se tornarem incapacitantes contribuiu para a prática integrada e compreensiva pela qual, ainda hoje, se luta. Assim, é essencial reforçar que a Organização Mundial de Saúde entende que esta abordagem terapêutica melhora a qualidade de vida de pacientes e das suas famílias que enfrentam problemas associados com doença ameaçadora de vida, através da prevenção e alívio do sofrimento pela identificação antecipada e avaliação e tratamento corretos de dor e outros problemas, físicos, psicossociais e espirituais

Por isto, os cuidados paliativos devem ser preventivos, sendo impreterível que os portadores de doença crónica tenham um seguimento atempado, de forma a minimizar o impacto das limitações quotidianas e tentar retardar, ao máximo, o possível processo degenerativo e natural da história da sua doença.

Adicionalmente, a introdução antecipada de cuidadores especializados na rotina familiar, tende a aliviar o membro cuidador e melhorar a relação entre este e o doente, o que demonstra uma incomensurável importância na saúde mental de todos os envolvidos, ao impedir que as relações interpessoais do agregado se focalizem somente na doença.

E, onde conseguimos encontrar cuidados especializados? Apesar de haver diversos profissionais de saúde formados nesta área, ainda não são suficientes para colmatar as necessidades da nossa população. Além de que, Portugal continua a ter um problema preocupante: há uma concentração de centros especializados do Serviço Nacional de Saúde no litoral. Ou seja, esta iniquidade, dificulta a acessibilidade à população do interior que, sendo demograficamente mais envelhecida, é também a que consequentemente comporta a maioria de doentes necessitados.

No entanto, apesar do longo caminho já percorrido, aquele que nos falta desbravar está mais ao nosso alcance do que o que pensamos. Como acima discutimos, o acesso aos Cuidados Paliativos não é apenas destinado a pessoas no limiar da morte, nem apenas destinado a manter alguém confortável. Tendo várias fases de acesso e diferentes opções terapêuticas, o objetivo major passa por ajudar cada indivíduo a viver o seu melhor dia, de acordo com os seus desejos e vontades- ad lib - e durante o máximo de tempo de qualidade possível. Se queremos prolongar a detenção da dignidade e autonomia humanas, comecemos por repor esta verdade e diminuir o seu tabu.


Mafalda Alves